O egoísta fim dos Beatles 50 anos depois

Publicado em 04/06/2020 20:33
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O baterista Ringo Starr da banda Os Beatles exercia a função ideal de leva-e-traz, que suavizava a mensagem e era o mensageiro das más notícias para Paul McCartney. Quem a repassava eram, óbvio, John Lennon e George Harrison. Assim que mais uma vez o Ringo se apresentou na casa de McCartney. “Eeer, hmmm, é que John, George e eu decidimos que você não pode lançar seu disco solo em abril. Aqui está o que foi escrito.” McCartney insultou, mostrou o dedo para Starr, atacou seu casaco nele e o empurrou para fora. Era março de 1970, um mês depois a maior banda de rock da história se separou. Foi um final divertido. Final? Não houve uma coletiva de imprensa para anunciá-lo. Só mensagens subliminares e uma manipulação jornalística. Um término estranho, o ruim final de uma década em que eles fizeram o mundo ser mais feliz. E aconteceu há exatamente meio século.

“Eles oficialmente nunca se separaram. Não houve nenhum comunicado. É por isso que muita gente durante os anos setenta esperava que voltassem a gravar”, fala por telefone, no isolamento de sua casa londrina, o escritor Philip Norman, uma das figuras que mais entendem da banda de Liverpool, com seis livros lançados, incluindo John Lennon – A Vida e Paul McCartney – A Biografia (Companhia das Letras).

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O acontecido em março de 1970 era o seguinte: Paul McCartney se preparava para lançar seu primeiro disco solo, McCartney, no mês seguinte, pelo selo do quarteto, a Apple Records. O impasse era que Let It Be chegaria às lojas em maio, também pela Apple Records. Alguém se atentou que aquela concorrência era horrível. Como o então problema seria resolvido? Paul deveria adiar seu álbum.

“Havia algo de mesquinho na relação entre Paul e John. Mas essa competitividade era parte do que os fez serem tão brilhantes juntos: desafiando-se para conseguirem feitos artísticos maiúsculos. O amor os manteve unidos, mas a pressão os fez se comportarem de maneira lamentável, sobretudo no final”, diz o escritor Peter Ames Carlin, autor de ‘Paul McCartney – Uma Vida’

Paul McCartney e John Lennon (Foto: Reprodução)

A relação entre o quarteto era muito abusiva naquela época. A produção de Abbey Road (último álbum gravado pela banda, pois Let It Be, embora sido lançado depois, tinha sido registrado antes) levou ao limite o estresse psicológico dos quatro. Harrison aproveitou do ódio entre Lennon e McCartney para incluir em Abbey Road duas de suas grandes composições, Something e Here Comes the Sun; Ringo Starr destacou Octopus’s Garden, uma história aquática que revelava o que sentia com os Beatles: “Eu queria estar debaixo d’água”; e Paul McCartney dedicava You Never Gime Your Money (“você nunca me dá seu dinheiro”) ao nervoso, Allen Klein.

É necessário acrescentar um espaço nesta história a Klein, um sujeito misterioso, que esterilizava empresas cortando as cabeças precisas. Foi aconselhado aos Beatles por Mick Jagger (outro cérebro da contabilidade) quando os buracos na tesouraria da Apple eram profundos. McCartney se negou a aceitá-lo: sabia de sua falta de caráter e da sua exigência de ficar com 20% dos lucros da banda de Liverpool. Paul preferia que a parte administrativa ficasse a cargo do seu sogro, o advogado Lee Eastman, pai de Linda, sua esposa. Lennon era o principal defensor de Klein, enquanto Harrison e Starr também deram seu ok. O filme podia se chamar Todos Contra Paul.

Conforme artigo do El País escrito por Carlos Marcos, a revolta de McCartney tomou conta de tudo. Ele telefonou para os principais escritórios da Apple, para empresários do cenário musical, para jornalistas, para gente influente, até que, Ringo, outra vez, convenceu os demais a deixarem o colega lançar seu primeiro disco solo antes de Let It Be. E chegou à contrapartida de Paul. Os primeiros exemplares de McCartney incluíam uma duvidosa autoentrevista onde o artista narrava as motivações para gravar fora da banda. Exploradas as conclusões, tudo ficava óbvio, mas não existia uma mensagem concreta sobre a pauta. A entrevista contém 20 perguntas, mas as principais são estas três:

Pergunta. Este álbum é uma separação dos Beatles ou o início de uma carreira solo?

Resposta. O tempo dirá. Que seja um disco solo significa que é o início de uma carreira solo, e que não o tenha feito com os Beatles significa que é um descanso.

Pergunta. Esta separação dos Beatles é temporária ou permanente, e se deve a diferenças pessoais ou musicais?

Resposta. A diferenças pessoais, empresariais e musicais, mas acima de tudo a que me divirto mais com minha família [Linda Eastman, mulher de Paul, era a única pessoa que participava do disco; McCartney o tocou inteiro]. Temporário ou permanente? Na verdade, não sei.

Pergunta. Preveem em algum momento no futuro que Lennon e McCartney componham juntos?

Resposta. Não.

Não parece um ponto de vista animador para os fãs da banda, mas se falou em algum momento que os Beatles se separaram? Não claramente. “Na verdade, não sei”, deixa escapar McCartney. Os primeiros exemplares do disco, com a paródia de entrevista, foram distribuídos aos veículos de comunicação em 10 de abril. Um jornalista do jornal Daily Mirror obteve um exemplar da entrevista um dia antes, 9 de abril. Na manhã do dia seguinte, uma tiragem extraordinária inundava os quiosques com uma manchete de página inteira: “Paul McCartney deixa os Beatles”. Atribui-se isso da famosa entrevista? Sim, mas não. O silêncio do resto do grupo, de Allen Klein e de outros envolvidos dava um caráter oficial a esse título. Ao final, um jornal sensacionalista revelou o fim do grupo.

A publicação do ‘Daily Mirror’ de 10 de abril de 1970 com a manchete “Paul deixa os Beatles”.

Porém, John Lennon ficou revoltado. Em 20 de setembro de 1969, John numa reunião nos escritórios da Apple, tinha assumido seu desejo de deixar os Beatles. Mas decidiram não anunciar isso publicamente, já que havia projetos em andamento, como Let It Be. “Foi John quem se cansou antes de ser um beatle. E procurou uma saída. Mas não encontrou o caminho até que conheceu Yoko Ono. Foi ela a pessoa que lhe disse: ‘Você não precisa estar na banda se não gostar’. Isso aconteceu em 1967. Então foi uma despedida muito lenta”, conta Philip Norman.

Lennon já era o terceiro membro a ter revelado que queria ir embora. O primeiro foi Ringo Starr (que saiu), depois Harrison e, no ocaso do grupo, Lennon. Paul não tinha falado nada. “No final da sua carreira os Beatles se sentiam como numa prisão. Decidiram não fazer shows porque não se escutavam os instrumentos, apagados pelos gritos das pessoas. Afastarem-se dos holofotes porque não suportavam mais a pressão. E criaram seu próprio mundo. Os quatro sempre estavam juntos. Quando se davam bem não havia problema, mas quando aumentaram as tensões era uma tragédia. Quem tentou manter o grupo com vida sempre foi Paul. Ele estava consciente de que se não continuasse empurrado a carroça seria o final”, conta Norman.

Aquela entrevista narrada de McCartney provocou a revolta de seu colega. Lennon ligou para seu jornalista, Ray Connelly, para lhe passar algumas declarações: “Ele está se atribuindo o mérito de romper o grupo, sendo que eu tinha dito isso em setembro”, provocou. “Havia algo de mesquinho na relação entre o Paul e John. Mas essa competitividade era parte do que os fez serem tão brilhantes juntos: desafiando-se para conseguirem feitos artísticos maiúsculos. O amor os manteve unidos por muito tempo, mas a pressão da fama chegou a um ponto que os fez se comportarem de maneira lamentável, sobretudo no final”, diz, do seu isolamento em Nova York, o escritor Peter Ames Carlin (Nova York, 56 anos), autor de Paul McCartney – Uma Vida (Nova Fronteira).

Na guerra Paul versus John, a imprensa e a maioria dos fãs se posicionaram pelo segundo. Enquanto McCartney se entristecia pelas críticas horríveis referente ao seu disco de estreia, Lennon se encontrava com grandes jornalistas, tratava-os com um carinhoso amor para ser uma estrela arrogante e lhes contava que o Judas se chamava Paul. Apoiaram e acreditaram nele. Os dois amigos colocavam um fim na relação. John se apaixonou por Yoko, e Paul por Linda, ambos usaram suas mulheres como substitutas do outro.

A banda britânica Beatles (FOTO: Reprodução)

O próximo passo de McCartney piorou ainda mais sua imagem. Ele não podia aceitar que 20% de seus lucros fossem para o cofre de Allen Klein. E abriu uma ação judicial contra os Beatles. “Paul chegou a dizer que Klein tinha tentado se congraçar com ele difamando John, e sobretudo Yoko, quando o casal não estava presente”, diz Carlin. Anos depois a Justiça deu a razão a McCartney, e os Beatles (os quatro, não só Paul) recuperaram a percentagem de Klein.

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Alguns meses depois, a guerra recrudesceu. Paul dedicou a John algumas mensagens nada bondosas em seu projeto seguinte, Ram (1971). Porém, Lennon, escreveu canções como How Do You Sleep (de Imagine, 1971), com frases como estas: “A única coisa que você fez foi Yesterday” e “o erro que você cometeu estava na sua cabeça”. “É triste que uma banda tão alegre tivesse um final tão doloroso. Projetaram tanta luz no mundo que se passa por cima da escuridão que os cercava no final. A onda de amor que emitiram teve uma ressaca: as pressões da fama e o lado sombrio da adoração que seus admiradores sentiam por eles”, relata Carlin.

Na década de 1970, seis discos de membros dos Beatles foram lançados: os já mencionados Let It Be e McCartney, dois projetos-solo de Ringo Starr (Sentimental Journey e Beaucoups of Blues), um de John Lennon (John Lennon/Plastic Ono Band) e um (triplo) de George Harrison (All Things Must Pass). Neles há conteúdo suficientemente bom para alcançar a discografia inteira de bandas muito consideradas no dia atual.

(Baseado no artigo de Carlos Marcos do El Pais)

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